quarta-feira, janeiro 18, 2006

Minha Filha

Não sei quando a criança pára
de enxergar anjos ou de cumprimentá-los.
Se acontece por uma obediência natural

ao esquecimento, ou só depois?
Para não sofrer com os acidentes do invisível,
já que é demasiado sofrer

com o que se aprende no visível.
Essa é uma resposta que te devo.
Ficamos juntos algumas horas ao dia,

e fico reparando em teus gestos
para descobrir algo do meu temperamento no teu.
Eu não te eduquei,

não te corrigi em seqüência,
sou o pai que vai voltar tarde.
Tudo o que tento ensinar não tem uma segunda

e uma terça-feira para permanecer.
Esquecemos de continuar, de completar
a frase, o assunto e a partitura.

Nossa convivência é feita de inícios,
com a memória diária de que estou ali
e tu estás ali, como duas crianças

regendo uma tempestade.
Te aproximas de mim
a segurar um objeto antigo.

Um objeto antigo que recorda
a casa que não teve. Não descobri
a forma ideal de convivência,

muito menos o que gritar
para chamar tua atenção.
O que desperta tua confiança:

A ordem ou o sussurro?
O riso contido ou desavergonhado?
O choro de frente ou murmúrio abafado?

Na hora em que me beijas,
viras o rosto lentamente,
a escapar da barba.

Herdaste até o medo da barba de tua mãe.
Herdaste os medos dela com lealdade.
Não herdaste meu medo

de não ser compreendido.
Não posso me defender
dos ataques dela,

do que ela possa dizer de mim.
Porque defender é atacar.
Atacar é destruir a casa

em que moras, a vida que tens,
o mundo que desde sempre reverencias como teu e indivisível
.