quarta-feira, junho 07, 2006

GLOBO E RISCO DE VIDA

Antes de morrer pela palavra

De um tempo para cá se têm ouvido e lido nos veículos do sistema Globo de jornalismo a expressão "risco de morte". Aos poucos foi possível decifrar o sentido: a novidade chegou com o propósito de substituir "risco de vida". "Ignorância ou má-fé?", pergunta a professora e especialista em Língua Portuguesa, Maria da Conceição do Couto Netto.
Conceição lembra que em seu mais conhecido livro, 1984, George Orwell "nos fala de uma `novilíngua´ – tradução bastante adequada para a palavra newspeak –, eficientíssimo instrumento de manipulação mental sob o comando do Big Brother, onipresente personagem da sombria narrativa cujo tema, atualíssimo, aborda o controle absoluto da sociedade humana, uma idéia nada distante do que está ocorrendo hoje, nos vagidos do século 21".
Prossegue a professora: "Publicado em 1949, o texto nos alerta para a possibilidade de vivermos futuramente num planeta dominado por uma poderosíssima organização tentacular, quando então não haverá espaço para divergências políticas ou religiosas, opiniões contraditórias, embates intelectuais autênticos e outros exercícios discursivos inerentes à liberdade de expressão que caracteriza os ambientes verdadeiramente democráticos".
"Ao destacar em sua obra a importância estratégica da novilíngua", continua a professora, "Orwell nos alerta para aquilo que desde o pré-socrático filósofo Heráclito já se deveria saber: a mente é a sede do discurso, o discurso é tecido pela língua e a língua é o suporte do pensamento, donde pode-se razoavelmente inferir que controlar a língua é um dos modos mais rápidos e insidiosos de teleguiar a mente das pessoas sem que elas percebam". Para ela, alguns exemplos dessas tentativas de sutilíssima dominação acontecem logo ali, na esquina do país em que vivemos, sem que causem estranheza na alma dos intelectuais de plantão, sempre aparentemente tão atentos a outras questões de interesse popular, em nome de uma mentalidade politicamente correta, legítima Hidra-de-Lerna dos tempos modernos, à altura das piores intenções de um Big Brother verde-amarelo".
"Pois é" – salienta Conceição –, "vindo ao encontro dessas sinistras constatações, eis que surge no horizonte dos meios de comunicação – estamos falando especificamente da TV Globo – um acontecimento que parece curiosamente se relacionar com o esquema orwelliano de rescritura lexical: riscaram do texto jornalístico, num passe de mágica besta, a expressão risco de vida. Agora a palavra de ordem é falar e escrever risco de morte!"

Para levar em conta

E mais: "Sedimentada por séculos de uso e consagrada por falantes de todas as camadas sociais, a forma proscrita é facilmente encontrada na obra de escritores como Machado de Assis e Eça de Queirós, entre outros de igual porte literário. Não bastassem tais credenciais, é preciso lembrar aos desavisados que rejeitar essa provecta criatura é ignorar que lá onde o diabo perdeu as botas lingüísticas – lugar interessantíssimo no qual, por exemplo, "pois sim" pode significar não e "pois não", sim – ela era falada e escrita como "risco de perder a vida", tendo sofrido, por conta do passar dos anos, uma elipse, fenômeno lingüístico que reduz a extensão de um enunciado sem prejuízo do seu sentido original".
Observações desse tipo, segundo a professora, levantam a suspeita shakesperiana de que há algo de muito podre no reino da mídia brasileira. "A iniciativa de se fazer tão esdrúxula correção verbal terá partido de um generoso interesse em prestar um serviço educacional à população?", pergunta. "Se foi isso, o fato resultou, na verdade, em um erro estapafúrdio – o que só denota ignorância. Ou será que o ocorrido, nas barbas da desatenção patológica em que se afoga a consciência nacional, terá sido o sintoma de uma descarada tentativa de finalmente se implantar no país a novilíngua versão portuguesa sob a inspiração profética de Orwell? Se foi isso, o acontecido não passou de um balão de ensaio para vôos totalitários mais altos – o que só denota desonestidade. Tertium non datur..."
E conclui a professora: "Felizmente, tanto na ficção quanto na realidade, o projeto de poder absoluto que utiliza a pasteurização discursiva – eficiente método de semeadura para o florescimento daninho de um conveniente "pensamento homogêneo" – encontrará invariavelmente resistência na misteriosa força do não por acaso desmoralizadíssimo livre-arbítrio, ainda presente em alguns raros e incômodos seres que sabem que a língua é o veículo por excelência do vastíssimo psiquismo humano, uma estrutura natural que nenhum meio externo, por mais opressor e maquiavélico que seja, conseguirá cercear ou moldar completamente: quem cria o vírus conhece a vacina."
Creio que a reflexão da professora Maria da Conceição deve ser levada em conta para que a vida não corra o risco de morrer pela palavra.


Por Maria Luiza Franco

6 Comments:

Blogger Natalia Gregolin said...

Oie...
Poxa, ultimamente venho pensado muito a respeito das metamorfoses sofridas na lingua portuguesa..
Seria uma forma de constatar a ignorancia da população?Seia pois uma forma de compactuar com essa realidade? Ou apenas uma forma de menosprezar a capacidade de interpretações da sociedade?
Na verdade naum sei!
Só sei que, como dito pela professora, tais expressões foram também usadas por Machado e Eça..para tanto, também seria correto dizer que a lingua portuguesa está sofrendo avanços retrocessos? Eita..contraditório isso...

PS: estou passando por uma fase de trabalhos constantes na faculdade, por isso estou sem muita capacidade de concaternar informações compexas..rs

bjaum
c cuida

junho 09, 2006 2:48 PM  
Anonymous Anônimo said...

A novilíngua, de Orwell (vale a pena ler "1984"), já é comum entre nós, mas muitos ainda não se deram conta. Basta ler as mensagens trocadas pelo MSN. Podem me chamar de purista, mas não consigo aceitar coisas como "naum", "beiju" e outras barbaridades. Se a justificativa é abreviar para poupar trabalho, ela tem o efeito contrário porque empobrece a língua. Coitado do nosso português, já tão castigado pelos anglicismos (checar, printar etc), agora tem que enfrentar mais essa.

junho 09, 2006 5:52 PM  
Anonymous Anônimo said...

Em relação ao "risco de morte", o Luiz Garcia, do jornalão O Globo, trava uma batalha ferrenha contra essa estupidez. Na crítica diária que faz na pg 2 do jornal, ele aponta alguns erros da edição anterior. "Risco de morte" é um dos que ele mais combateu até há pouco tempo. Parece que a redação se rendeu e voltou a usar "risco de vida" pois não tenho mais encontrado essa "novidade" na matérias. Já na TV Globo...

junho 09, 2006 5:57 PM  
Blogger Ná Jornalista web said...

Bom dia, Marcelo!
Coincidentemente, estou lendo o livro 1984, citado no seu post.E parei para pensar na "novilíngua" que é criada pela Globo (majoritariamente).E percebi a influência exercida sobre a população.
Uns dias atrás vi um professor, não lembro o nome, na TV Cultura comentado sobre a lígua nova que nasce sem que a maioria de consigamos ver a manipulação existente nas entrelinhas.

junho 14, 2006 7:13 AM  
Blogger jckaplan said...

Quem corre risco é a vida. A morte é a consequência do grau do risco envolvido. Tão sutil quanto uma vaca pastando...
O correto é RISCO DE VIDA.
Nossos jornalistas estão viajando na maionese. Será que eles não conseguem revisar um texto? Ou eles não possuem autonomia para tal?

dezembro 04, 2007 9:20 PM  
Anonymous Anônimo said...

MUITO BOM!
A mídia tem se comportado de forma arrogante e presunçosa em vários aspéctos. E este, no caso do “risco de vida”, tornou-se um clássico da presunção e autoritarismo.
Somente para acrescentar ao lúcido texto do autor, a legislação brasileira (civil, administrativa e penal) utiliza largamente e exclusivamente as expressões “perigo de vida”, “periclitação da vída e saúde” e “risco de vida”.
Parece que com este suposto achado, revogou-se metade da legislaçao brasileira.

agosto 06, 2008 12:32 AM  

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